O bumba meu boi nasceu no Piauí. Com a proximidade dos territórios, subiu para o Norte, e se esparramou. Mas apenas os piauienses sabem esse lado da história. Sendo desde sempre o território de localidade dos originários, posteriormente, dos pastos de gado, e dos vaqueiros. O bumba meu boi não poderia ter nascido em outro lugar, mas com certeza, teve a valorização que merecia, fora de sua terra natal. Onde permanece a verdadeira raiz do bumba meu boi piauiense, sua essência e resistência? Essa é a pergunta e resposta que Boi Romeiro, novo curta-metragem de Milena Rocha, nos apresenta.

O filme é um documentário musical que destaca a memória, o luto, o sagrado e o devoto. Através de toadas, onças e miolos, que resultam em uma dança entre temporalidade, ancestralidade e misticidade, a obra nos mostra a capacidade de atravessar o tempo que por nós foi inventado. A cineasta e jornalista piauiense nos entrega uma imersão na tradição do interior do estado. Gravado em Teresina e Santa Cruz dos Milagres, o curta tem como fio condutor a trajetória de Mestre Junim, que viaja com o grupo para pagar uma promessa feita por seu pai, guiado pelo Boi Mimo de Santa Cruz.

Marcado por um misto de sensibilidade e denúncia, Boi Romeiro nos conduz à dura e bela realidade do bumba meu boi em sua terra de origem. A obra cativa de imediato pela fotografia delicada, iluminada, com gosto de casa. Desperta emoção. Ela consegue registrar o tradicional e o místico, junto a uma montagem que reforça um entendimento essencial: nossa cultura brota do sagrado, do místico e da força das matas, somos uma dança espiralar.

Trazendo a figura do boi como herança das sementes plantadas por quem já partiu, desde o início, a presença de Mestre Índio é marcante através da força da mata e da chama das velas, esse personagem de destino simbólico, representava fielmente nossos antepassados e se foi talvez por acreditar demais que a cultura poderia ser a porta de entrada para a salvação. Reconhecer o bumba meu boi como precioso e nosso, seria, então, o primeiro passo. Sua memória é respeitada, e o filme, faz esse papel crucial, como obra, como cinema, como cultura, e como justiça.

O filme também escancara o cenário teresinense, nu e cru, e a gente se familiariza e sente que entra de uma maneira diferente, em uma comunidade que provavelmente nunca seria enxergada por quem passa ali. Surpreende ao revelar a associação do bumba meu boi instalada por trás da grotesca obra futebolística,inaugurado em 1973, o estádio Albertão, também conhecido como gigante da redenção, é símbolo de uma prioridade distante da realidade cultural do estado. Boi Romeiro nos faz refletir: o que nossos gestores estão, de fato, priorizando? Um estado que respeita sua cultura, com certeza destinaria ‘’ gigante da redenção’’, a outro local pela proximidade.

Assim como ninguém imagina uma associação de bumba meu boi atrás de um estádio, poucos percebem a preciosidade dos erês que ali brincam. Como sementes. A cena das crianças conduzindo o boi com caixas, logo na abertura, é uma das mais marcantes, e nos revela uma característica única: no Piauí, são as crianças que guiam o boi.

O mimo de Santa Cruz é romeiro. Sai de Teresina rumo ao interior para pagar a promessa do boi. O filme, então, ganha um tom de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo: a estrada, a romaria,o interior piauiense. Somos transportados para dentro desse caminho de fé, impregnado de melancolia, saudade dos que se foram e a certeza de que a vida segue adiante.

Percebe-se que diferentes olhares fotográficos se entrelaçam, costurando o selo Labcine — agora Cocais Filmes — de sensibilidade ao real e ao político. Para além de apresentar a comunidade Mimo de Santa Cruz, o curta nos devolve o contato com o humano real e a sua capacidade de acessar o sagrado.

Mas o que Boi Romeiro também escancara é a ausência de políticas consistentes: onde estão os olhos para o boi do Piauí? Quem se preocupa em perpetuar esse legado, além dos próprios brincantes, que sustentam a tradição à base de luta, amor e suor? Enquanto no Piauí um grupo de boi recebe cerca de 10 mil reais por ano em edital, um valor que não chega a 50% do salário de um vereador da capital, seguimos deixando nossa cultura sobreviver sozinha.
Cocais Filmes reafirma seu dom: escancarar o real com sensibilidade, perpetuar o valor do sagrado e suas misticidades, sem abrir mão do grito político. Com sua marca de realizar documentários originais, autorais, políticos e sensíveis, tudo misturado e bem amarrado, o selo lab cine, que renasce na mata de cocais. Por fim, Boi Romeiro nos obriga a colocar a lupa sobre nós mesmos e questionar: o que está sendo feito com a cultura do nosso estado?


Sinopse
Guiado por um sonho, Mestre Junim parte em uma jornada ao interior do Piauí para cumprir a promessa de seu pai. Entre lembranças e toadas do boi Mimo de Santa Cruz, o documentário revela a força de um legado que pulsa em cada nota.
Sobre Milena Rocha

Natural de Santa Cruz dos Milagres (PI), Milena Rocha é uma das vozes do cinema piauiense contemporâneo. Jornalista formada pela UFPI, mestranda em Artes (Cinema) na UFRB e Diretora da Cocais Filmes, Milena se destaca por trabalhos que entrelaçam memória, identidade e territórios. Seus filmes transitam entre o documental e o poético, como nos premiados Mulheres de Visão e Álbum de Família: Carta 1. Em 2025, participou do Taller Internacional de Cine Autorreferencial, na EICTV (Cuba), nutrindo sua atuação no cinema de base comunitária e autorreferencial.

FICHA TÉCNICA
Elenco
Marcélia da Silva Dias Pereira
Marcilene da Silva Silveira
Maria da Cruz Ribeiro de Matos
Juvenal Dias Pereira Junior (Mestre Junim)
Crianças
Davi Lucas Pereira de Sousa
Enzo Izael da Silva Silveira
João Carlos Soares Pessoa
João Guilherme da Silva Silveira
João Gabriel da Silva Silveira
Kaylan Micael da Silva Silveira
Coprodução
Alecrim Produtora
Luz Negra
Cocais Filmes
Argumento
Milena Rocha
Roteiro
Milena Rocha
Weslley Oliveira
Direção
Milena Rocha
Produção Executiva
Weslley Oliveira
Produção
Milena Rocha
Clara Bispo
Assistência de Produção
Melissa Bomfim
Produção Local
Milton Cesar Alves da Rocha
Yasmin Vieira de Oliveira
Catering
Ivanir Andrade
Chagas Mesquita
Direção de Fotografia
Renata Fortes
Operação de Câmera
Emerson Mourão
Priscila Guedes
Fotografia Still
Ana Carla Falcão
Som Direto
Weslley Oliveira
Colorização
Oliver
Montagem
Weslley Oliveira
Musicistas convidados
Boi Mimo de Santa Cruz
Jazi Oliveira
Trilha Sonora:
C-AFROBRASIL e Boi Mimo de Santa Cruz
Desenho de som:
C-AFROBRASIL
Mixagem:
Hugo Rocha
Gravação em estúdio
Cássio Carvalho
Legendagem e finalização
Weslley Oliveira
Tradução Inglês
Letícia Sousa
Tradução Espanhol
Milena Rocha
Tradutora Intérprete de Libras
Cristiele Pinheiro
Roteiro de Audiodescrição
Solange Lustosa
Márcia Cristina
Locução de audiodescrição
Milena Rocha
Gravado nas cidades de Teresina e Santa Cruz dos Milagres.
AGRADECIMENTOS
Associação Boi Mimo de Santa Cruz