Boi Romeiro e a força de mostrar o Piauí real, por Milena Rocha

Boi Romeiro e a força de mostrar o Piauí real, por Milena Rocha

O bumba meu boi nasceu no Piauí. Com a proximidade dos territórios, subiu para o Norte, e se esparramou. Mas apenas os piauienses sabem esse lado da história. Sendo desde sempre o território de localidade dos originários, posteriormente, dos pastos de gado, e dos vaqueiros. O bumba meu boi não poderia ter nascido em outro lugar, mas com certeza, teve a valorização que merecia, fora de sua terra natal. Onde permanece a verdadeira raiz do bumba meu boi piauiense, sua essência e resistência? Essa é a pergunta e resposta que Boi Romeiro, novo curta-metragem de Milena Rocha, nos apresenta.

Fotografia still por Ana C. Falcão

O filme é um documentário musical que destaca a memória, o luto, o sagrado e o devoto. Através de toadas, onças e miolos, que resultam em uma dança entre temporalidade, ancestralidade e misticidade, a obra nos mostra a capacidade de atravessar o tempo que por nós foi inventado. A cineasta e jornalista piauiense nos entrega uma imersão na tradição do interior do estado. Gravado em Teresina e Santa Cruz dos Milagres, o curta tem como fio condutor a trajetória de Mestre Junim, que viaja com o grupo para pagar uma promessa feita por seu pai, guiado pelo Boi Mimo de Santa Cruz.

Fotografia still do filme por Ana Carla Falcão
Fotografia still por Ana C. Falcão/ Sede Boi Mimo de Santa Cruz.

Marcado por um misto de sensibilidade e denúncia, Boi Romeiro nos conduz à dura e bela realidade do bumba meu boi em sua terra de origem. A obra cativa de imediato pela fotografia delicada, iluminada, com gosto de casa. Desperta emoção. Ela consegue registrar o tradicional e o místico, junto a uma montagem que reforça um entendimento essencial: nossa cultura brota do sagrado, do místico e da força das matas, somos uma dança espiralar.

Fotografia still por Ana C. Falcão

Trazendo a figura do boi como herança das sementes plantadas por quem já partiu, desde o início, a presença de Mestre Índio é marcante através da força da mata e da chama das velas, esse personagem de destino simbólico, representava fielmente nossos antepassados e se foi talvez por acreditar demais que a cultura poderia ser a porta de entrada para a salvação. Reconhecer o bumba meu boi como precioso e nosso, seria, então, o primeiro passo. Sua memória é respeitada, e o filme, faz esse papel crucial, como obra, como cinema, como cultura, e como justiça.

Fotografia still por Ana C. Falcão

O filme também escancara o cenário teresinense, nu e cru, e  a gente se familiariza e sente que entra de uma maneira diferente, em uma comunidade que provavelmente nunca seria enxergada por quem passa ali. Surpreende ao revelar a associação do bumba meu boi instalada por trás da grotesca obra futebolística,inaugurado em 1973, o estádio Albertão, também conhecido como gigante da redenção, é símbolo de uma prioridade distante da realidade cultural do estado. Boi Romeiro nos faz refletir: o que nossos gestores estão, de fato, priorizando? Um estado que respeita sua cultura, com certeza destinaria ‘’ gigante da redenção’’, a outro local pela proximidade.

Fotografia still por Ana C. Falcão

Assim como ninguém imagina uma associação de bumba meu boi atrás de um estádio, poucos percebem a preciosidade dos erês que ali brincam. Como sementes. A cena das crianças conduzindo o boi com caixas, logo na abertura, é uma das mais marcantes, e nos revela uma característica única: no Piauí, são as crianças que guiam o boi.

Fotografia still por Ana C. Falcão

O mimo de Santa Cruz é romeiro. Sai de Teresina rumo ao interior para pagar a promessa do boi. O filme, então, ganha um tom de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo: a estrada, a romaria,o interior piauiense. Somos transportados para dentro desse caminho de fé, impregnado de melancolia, saudade dos que se foram e a certeza de que a vida segue adiante.

Fotografia still por Ana C. Falcão

Percebe-se que diferentes olhares fotográficos se entrelaçam, costurando o selo Labcine — agora Cocais Filmes — de sensibilidade ao real e ao político. Para além de apresentar a comunidade Mimo de Santa Cruz, o curta nos devolve o contato com o humano real e a sua capacidade de acessar o sagrado. 

Fotografia still por Ana C. Falcão

Mas o que Boi Romeiro também escancara é a ausência de políticas consistentes: onde estão os olhos para o boi do Piauí? Quem se preocupa em perpetuar esse legado, além dos próprios brincantes, que sustentam a tradição à base de luta, amor e suor? Enquanto no Piauí um grupo de boi recebe cerca de 10 mil reais por ano em edital, um valor que não chega a 50% do salário de um vereador da capital, seguimos deixando nossa cultura sobreviver sozinha.

Cocais Filmes reafirma seu dom: escancarar o real com sensibilidade, perpetuar o valor do sagrado e suas misticidades, sem abrir mão do grito político. Com sua marca de realizar documentários originais, autorais, políticos e sensíveis, tudo misturado e bem amarrado, o selo lab cine, que renasce na mata de cocais. Por fim,  Boi Romeiro nos obriga a colocar a lupa sobre nós mesmos e questionar: o que está sendo feito com a cultura do nosso estado?

Fotografia still por Ana C. Falcão
Fotografia still por Ana C. Falcão

 

Sinopse 

Guiado por um sonho, Mestre Junim parte em uma jornada ao interior do Piauí para cumprir a promessa de seu pai. Entre lembranças e toadas do boi Mimo de Santa Cruz, o documentário revela a força de um legado que pulsa em cada nota.

Sobre Milena Rocha

Foto: Ana C. Falcão / Milena Rocha a direita

Natural de Santa Cruz dos Milagres (PI), Milena Rocha é uma das vozes do cinema piauiense contemporâneo. Jornalista formada pela UFPI, mestranda em Artes (Cinema) na UFRB e Diretora da Cocais Filmes, Milena se destaca por trabalhos que entrelaçam memória, identidade e territórios. Seus filmes transitam entre o documental e o poético, como nos premiados Mulheres de Visão e Álbum de Família: Carta 1. Em 2025, participou do Taller Internacional de Cine Autorreferencial, na EICTV (Cuba), nutrindo sua atuação no cinema de base comunitária e autorreferencial.

 

Equipe de gravação LabCine, atual Cocais Filmes

 

FICHA TÉCNICA 

Elenco 

Marcélia da Silva Dias Pereira

Marcilene da Silva Silveira

Maria da Cruz Ribeiro de Matos

Juvenal Dias Pereira Junior (Mestre Junim)

Crianças

Davi Lucas Pereira de Sousa

Enzo Izael da Silva Silveira

João Carlos Soares Pessoa

João Guilherme da Silva Silveira

João Gabriel da Silva Silveira

Kaylan Micael da Silva Silveira

Coprodução 

Alecrim Produtora 

Luz Negra 

Cocais Filmes

Argumento 

Milena Rocha 

Roteiro 

Milena Rocha

Weslley Oliveira 

Direção 

Milena Rocha 

Produção Executiva 

Weslley Oliveira 

Produção 

Milena Rocha

Clara Bispo

Assistência de Produção

Melissa Bomfim

Produção Local 

Milton Cesar Alves da Rocha 

Yasmin Vieira de Oliveira 

Catering 

Ivanir Andrade 

Chagas Mesquita

Direção de Fotografia 

Renata Fortes

Operação de Câmera

Emerson Mourão 

Priscila Guedes

Fotografia Still

Ana Carla Falcão

Som Direto 

Weslley Oliveira

Colorização 

Oliver

Montagem

Weslley Oliveira

Musicistas convidados 

Boi Mimo de Santa Cruz

Jazi Oliveira 

Trilha Sonora:

 C-AFROBRASIL e Boi Mimo de Santa Cruz

 

Desenho de som: 

C-AFROBRASIL

 

Mixagem: 

Hugo Rocha

 

Gravação em estúdio

Cássio Carvalho

 

Legendagem e finalização

Weslley Oliveira 

 

Tradução Inglês 

Letícia Sousa 

 

Tradução Espanhol 

Milena Rocha

Tradutora Intérprete de Libras

Cristiele Pinheiro

Roteiro de Audiodescrição

 

Solange Lustosa 

Márcia Cristina 

 

Locução de audiodescrição 

Milena Rocha

 

Gravado nas cidades de Teresina e Santa Cruz dos Milagres.

 

AGRADECIMENTOS 

Associação Boi Mimo de Santa Cruz 

 

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