Pelas mãos de mulheres: Piauí volta ao Festival de Brasília, com estreia de Boi de Salto, de Tássia Araújo

Pelas mãos de mulheres: Piauí volta ao Festival de Brasília, com estreia de Boi de Salto, de Tássia Araújo

O Piauí volta a ocupar espaço no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais antigo e prestigiado festival do país, e novamente pelas mãos de uma cineasta. Em 58 edições, apenas três produções piauienses foram selecionadas para a mostra oficial — todas dirigidas por mulheres. Depois de Kátia (2012), de Karla Holanda, e Carneiro de Ouro (2017), de Dácia Ibiapina, é a vez da estreia de Boi de Salto, curta dirigido por Tássia Araújo, que será exibido nesta terça-feira (16) na Mostra Competitiva Nacional de Curtas.

Acervo pessoal enviado pela cineasta, durante o Festival de Brasília.

A presença de obras piauienses ainda é rara no festival, mas quando acontece, tem assinatura feminina. O dado ganha ainda mais relevância diante da tradição local de reconhecer majoritariamente diretores homens como referência, enquanto são as cineastas que conquistam espaço nas premiações de maior prestígio nacional.

Em 2012, pela primeira vez, um filme piauiense foi selecionado para estrear no festival: Kátia, longa-metragem dirigido por Karla Holanda. Natural de Parnaíba, Karla reside no Rio de Janeiro desde 1992, quando se mudou para estudar cinema — hoje é professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).  Em 2017, foi a vez de Dácia Ibiapina, com Carneiro de Ouro. Natural de São João do Piauí (atual São José dos Peixes), Dácia estudou Engenharia Civil na UFPI, onde, junto com colegas, formou o coletivo Grupo Mel de Abelha nos anos 80. Foi ali, produzindo filmes em Super-8 no âmbito do cineclubismo, que iniciou sua trajetória no audiovisual se tornando uma das pioneiras mulheres cineastas do Piauí.

Da esquerda para direita: Luiz Carlos Sales, Socorro Melo, Dácia Ibiapina, Valderi Duarte e Lorena Rêgo. / Imagem arquivo pessoal de Valderi Duarte.

Ambas são figuras respeitadas no cenário do cinema nacional, com trajetória acadêmica e obras premiadas. No entanto, enfrentam um apagamento simbólico dentro do próprio estado: enquanto cineastas homens sem obras reconhecidas, nem participações em festivais, são celebrados localmente e frequentemente contemplados em editais, nomes como Karla Holanda, Dácia Ibiapina e Tássia Araújo ainda não têm o devido reconhecimento institucional no Piauí.

Neste ano, o destaque é Boi de Salto, de Tássia Araújo, representante da nova força de cineastas do  estado. O filme estreia nesta terça-feira (16), às 21h , no Cine Brasília.

Divulgação, Reprodução do Instagram Oficial.

Boi de Salto é o primeiro filme de ficção da diretora, roteirista e artista visual Tássia Araújo, autora do longa documental Comigo Num se Pode (2023). Com direção de fotografia assinada por Maria Navarro, DAFB, o curta mergulha no imaginário popular do Piauí para construir uma fábula sobre liberdade, resistência e reinvenção das tradições. No filme, o personagem Abdias é filho de Francisco e Catarina, que sonha em dançar de salto no Bumba-Meu-Boi mais tradicional da cidade. Quando é impedido de participar, decide criar sua própria tradição. O Boi Imperador da Ilha, com 91 anos de tradição, é personagem central e emblemático do filme, representando a força da cultura popular que resiste e se reinventa frente ao apagamento cultural.

Cartaz do Filme Boi de Salto

O curta é protagonizado por Mikael Costa no papel de Abdias, Kelly Campelo como mãe Catarina, Pedro Wagner como Seu Amaro e Luca Santos como pai Chico no elenco.

Framme de Boi de salto / Direção de Fotografia: Maria Navarro
Framme de Boi de salto / Direção de Fotografia: Maria Navarro
Framme de Boi de salto / Direção de Fotografia: Maria Navarro

 

Entrevista com Tássia Araújo para o Piauiensidades

 

  1. Representatividade do Piauí no Festival


Mariana (repórter): Você chega ao Festival de Brasília com o único filme do Piauí selecionado nesta edição. Como é para você representar o Estado em um evento tão importante, especialmente considerando que muitos Estados sequer conseguiram ter filmes selecionados para a mostra?

Tássia: ‘’Me sinto muito feliz e honrada. O Festival de Brasília faz parte da minha trajetória. Assim que comecei a estudar cinema, em 2012, eu soube do festival. Como tenho uma tia que mora aqui, sempre ficava hospedada na casa dela, o que facilitou minha vinda. Há 13 anos, vim pela primeira vez e percebi o quão grande era o cenário do cinema brasileiro. Voltei em 2015, 2018, sempre na intenção de aprender e assistir filmes. Estar aqui em 2025, 13 anos depois, é muito especial pra mim. E mais especial ainda com Boi de Salto, meu primeiro projeto autoral. É um filme que fala sobre a memória do estado, uma boa vitrine pro Piauí, pra nossa cultura. Além do curta, também estou com um projeto de longa na rodada de negócios, então terei esses dois momentos aqui no festival. Só tenho a agradecer, de verdade.’’

  1. Premiação e processo criativo


Repórter: Seu curta está na mostra competitiva e pode ser premiado no maior festival de cinema do país. Qual é a sensação de viver esse momento?

Tássia: ‘’Estou concorrendo a diversos prêmios junto com outros 10 curtas da Mostra Competitiva Nacional. É uma das primeiras vezes que o festival não repete estados: são 10 estados diferentes. Isso é muito legal, porque mostra a diversidade do país dentro do festival. Tem gente do Brasil todo e até de outros lugares do mundo, pessoas importantes do cinema. Então eu me sinto assim, muito feliz e eu acredito que a gente tem boas chances de levar alguns prêmios sim pra casa, pela consistência que tá nosso trabalho, pela dedicação que foi construir esse trabalho, então, eu vejo que a gente tem grandes chances e apesar de eu estar te dizendo isso não significa que eu esteja preparada para receber esse prêmio, sabe, subir ao palco. E trazer o Piauí, um estado invisível na cultura, que é muito mais invisível ainda na arte e muito mais invisível no cinema, está sendo um feito histórico muito gratificante.’’

  1. Mulheres no cinema piauiense


Repórter: Embora o cinema do Piauí historicamente não tenha dado visibilidade, às maiores conquistas no Festival de Brasília vieram das mulheres: em 58 edições, apenas três filmes piauienses foram selecionados, e todos dirigidos por mulheres. Sendo Karla Holanda em 2012, e Dácia Ibiapina em 2017, e você agora em 2025. Como você interpreta essa contradição e ainda, ocupando esse espaço como mulher diretora?

Tássia: ‘’Eu queria dizer que essas duas pessoas que você citou, essas duas mulheres, elas são duas grandes referências pro cinema que eu faço, pro cinema que me interessa, Karla Holanda e Dácia Ibiapina são referências de fazer um audiovisual consciente. Que não está interessado em capturar uma comunidade, mas sim em fortalecer essa comunidade, e a partir daí fazer um filme, eu acredito nesse lugar do cinema como aproximação e força. E reafirmo mais uma vez que elas são uma referência não só pra mim, mas pro cinema brasileiro, e principalmente para o cinema piauiense. E como mulher eu acho que é um feito histórico, e eu me sinto muito feliz de alcançar esse lugar que eu sempre sonhei,e ao mesmo tempo que sempre sonhei estar aqui, eu também não imaginava que eu pudesse estar aqui. Sabe?´´

Acervo pessoal enviado pela cineasta, durante o Festival de Brasília.

Sessões de estreia de Boi de salto

16/09 (terça-feira)

  • 19h45 — Complexo Cultural Planaltina
  • 21h — Cine Brasília – Sala Vladimir Carvalho

17/09 (quarta-feira)

  • 14h30 — Sesc 504 Sul

    Framme do Filme,  Direção de Fotografia: Maria Navarro

Filmes piauienses no Festival de Brasília

Filme Diretora Edição Categoria Observações
Kátia Karla Holanda 2012 Longa documentário Sobre Kátia Tapety, a piauiense que foi a primeira travesti eleita vereadora no Brasil. Não chegou a receber prêmios em Brasília mas recebeu em outros festivais.
Carneiro de Ouro Dácia Ibiapina 2017 Curta-metragem Ganhou Júri Popular de melhor curta e Melhor Direção pelo Júri Oficial.
Boi de Salto Tássia Araújo 2025 Curta-metragem Estreia na Mostra Competitiva e a diretora apresentará um projeto de longa metragem na rodada de negócios.

 

Carneiro de Ouro e Dácia Ibiapina

Dácia Ibiapina, Foto: Ana Carolina Matias

Natural de São João do Piauí, Dácia Ibiapina construiu carreira em Brasília, onde atua como professora da UnB. Seu curta Carneiro de Ouro (2017) é um marco para o cinema nordestino, ao trabalhar a cultura popular com olhar crítico e experimental. O filme venceu o Júri Popular de Melhor Curta e o prêmio de Melhor Direção pelo Júri Oficial, projetando Dácia como uma das vozes mais consistentes do cinema de resistência no país.

Cartaz Filme Carneiro de Ouro

A cineasta articula cinema, educação e movimentos sociais, sempre em diálogo com a memória e as tradições. Carneiro de Ouro não apenas marcou presença em um dos festivais mais importantes do Brasil, como também reafirmou que a produção vinda do Piauí — mesmo realizada em deslocamento geográfico — ocupa espaço central na cena audiovisual.

Kátia e Karla Holanda

Karla Holanda

Kátia (2012), de Karla Holanda, inaugurou a presença do Piauí no Festival de Brasília. O documentário narra a trajetória de Kátia Tapety, a primeira travesti eleita vereadora no Brasil, no município de Colônia do Piauí, em 1992. Mais do que um retrato biográfico, o filme é uma intervenção política: desloca a periferia do país para o centro das discussões sobre democracia, representatividade e direitos humanos.

Cartaz Filme Kátia, 2012

Karla Holanda, professora da UFF e pesquisadora do cinema brasileiro, constrói em Kátia um gesto de afirmação da diversidade e do protagonismo trans em um momento em que tais pautas ainda eram invisibilizadas. Sua estreia no festival foi histórica não apenas para o Piauí, mas para o cinema nacional, ao reposicionar a imagem do estado no mapa político e estético da produção contemporânea.

Boi de Salto e Tássia Araújo

Cartaz do Filme

Sinopse:

Após fugirem da fazenda de seu Amaro, pai Francisco e mãe Catarina chegam à Teresina para começar uma nova jornada. Abdias, sonha em dançar de salto alto, no grupo mais tradicional de Bumba-Meu-Boi da sua cidade. Depois de ser impedido de dançar de salto, Abdias cria uma tradição para si mesmo.

Tássia Araújo
Tássia Araújo no set de Boi de salto, Foto: Maria Navarro

Tássia Araújo (1987), de Teresina (PI), é artista visual e cineasta. Atua em projetos sobre memória, identidade e vivências LGBTQIAPN+. Em 2023 lançou o documentário longa-metragem “Comigo Num se Pode”, exibido nos festivais 19° Panorama de Cinema (BA) e XII Rio LGBTQ+, 3° Transgender Film Festival (FL). Em 2025, estreia “Boi de Salto”, curta-metragem de ficção selecionado na Lei Paulo Gustavo–PI. É jornalista, pós-graduada em Direção de Arte, com formação na Escola Roteiraria (2024-2025/SP).

Festival de Brasília: histórico e importância

Fundado em 1965 como Semana do Cinema Brasileiro, o festival foi idealizado por Paulo Emílio Salles Gomes com professores da UnB, como Jean-Claude Bernardet e Vladimir Carvalho. Ao longo de seis décadas, consolidou-se como o festival de cinema mais longevo do país e um dos mais prestigiados da América Latina, por três razões principais:

  • Ineditismo — exibe apenas filmes inéditos em festivais nacionais.
  • Diversidade regional — dá visibilidade a produções fora do eixo Rio-São Paulo.
  • Resistência cultural — enfrentou censura e chegou a ser suspenso entre 1972 e 1974 durante a ditadura.

O Cine Brasília, projetado por Oscar Niemeyer, é desde a inauguração o palco simbólico das exibições. Em 2025, o festival chega à 58ª edição celebrando 60 anos da sua criação, e abriu com O Agente Secreto, longa de Kleber Mendonça Filho protagonizado por Wagner Moura, vencedor de importantes prêmios em Cannes, como Melhor diretor ( Feito antes consagrado apenas por Glauber Rocha em 1969) e Melhor Ator. A escolha do filme para a sessão de abertura, na edição que celebra os 60 anos do Festival, reforça o peso simbólico desta edição. O Agente Secreto estreará comercialmente em 6 de novembro de 2025.

https://festcinebrasilia.com.br/

Mulheres no Festival de Brasília e no mundo

A presença feminina no festival foi tardia: apenas em 1968 uma mulher assinou pela primeira vez a direção de um filme exibido (Como Vai, Vai Bem?, de Valquíria Salvá, codirigido com cinco homens). O primeiro Candango de melhor longa dirigido por uma mulher só veio em 1985, com Suzana Amaral e A Hora da Estrela. Desde então, apenas seis outras cineastas venceram essa categoria.

Ainda assim, o número supera outros grandes festivais: Cannes premiou apenas uma diretora (Jane Campion, O Piano), Veneza apenas quatro, e o Oscar consagrou apenas uma vez uma mulher com a estatueta de melhor filme (Guerra ao Terror, de Kathryn Bigelow).

Comparativo com outros estados

Historicamente, estados como Alagoas, Santa Catarina, Piauí e Espírito Santo tiveram apenas um longa exibido em mostras competitivas até o fim da década de 2010. Pernambuco consolidou-se como polo nacional, acumulando dezenas de seleções e prêmios. Rio de Janeiro e São Paulo lideram o ranking, com médias que chegam a cerca de 100 filmes ao longo das edições.

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