Há quatro meses, o Piauí sente a ausência de uma das suas maiores referências científicas. No dia 4 de junho de 2025, partiu, aos 92 anos, Niède Guidon, arqueóloga responsável por pesquisas que mudaram a forma como o mundo enxerga a ocupação das Américas. Deixou para trás não apenas a administração do Parque Nacional Serra da Capivara, mas uma vida inteira dedicada a provar que o interior do Piauí era o centro de uma das mais fascinantes histórias da humanidade.

Quem conviveu com ela, sabe que a “Niède Pública”, cientista de fala firme e olhos determinados, era também uma mulher de gestos simples e humor diferenciado.
Rosa Trakalo, amiga pessoal da arqueóloga por quase cinco décadas, contou ao Piauiensidades que conheceu Niède em 1976, no Uruguai. Desde então, as duas nunca mais se separaram.
“Ela me telefonava todos os dias, às oito da manhã. E, se eu não aparecia até as cinco da tarde, ela ligava: ‘Não te vejo hoje?’. Era uma relação de carinho e de respeito mútuo”, conta Rosa, que acompanhou a amiga até seus últimos dias de vida em São Raimundo Nonato.

Rosa descreve Niède como “visionária e realizadora”. Visionária por ter enxergado, ainda em 1975, que a beleza das serras do Sul do Piauí e a arte rupestre poderiam transformar a região em destino mundial. Realizadora por ter tirado essa visão do papel, enfrentando um estado marcado pelo coronelismo, pela descrença e pelo isolamento.
“Ela fez do nada uma revolução. Criou o Parque, formou equipes, trouxe projetos de educação, saúde, apicultura, geração de renda. Tudo porque acreditava que só com dignidade as pessoas protegeriam o patrimônio que tinham”, contou Rosa ao Piauiensidades.

A FRENTE DO SEU TEMPO
Rosa recorda que, durante os primeiros anos de pesquisa na região da Serra da Capivara, Niède apareceu com um machado de pedra nas mãos. “Ela veio sorrindo e disse: ‘Veja o que eu achei’. Era um machado de pedra polida que hoje está no Museu do Homem Americano, uma peça que provou que a tecnologia humana evoluiu em diferentes partes do mundo, simultaneamente. “Ela estava sempre pensando além do seu tempo”, relembra.

E talvez tenha sido mesmo uma mulher de outro tempo. Em uma carta escrita em 2001, dirigida ao “arqueólogo do futuro”, Niède se refere ao destinatário como alguém que talvez fosse “uma máquina inteligente”, quando ninguém ainda falava em inteligência artificial. “Visionária ou não?”, pergunta Rosa.
O RIGOR E O LEGADO
Para quem conviveu com ela profissionalmente, a lembrança é de rigor e de formação constante. Marian Helen Rodrigues, hoje chefe do Parque Nacional da Serra da Capivara pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), lembra que ela era uma mulher de personalidade forte, mas também tinha um humor surpreendente.
“Em 2008, eu fui fazer a fala de um evento no antigo Hotel Serra da Capivara, de um projeto social com as crianças, dizendo: ‘Boa noite a todos e todas’. No final, ela me disse: ‘Você foi quase muito bem, não precisava falar todos e todas. É todos, e ponto’. Era assim: nada escapava. Mas era com esse rigor que ela formava pessoas o tempo todo, até nos momentos mais cotidianos”, conta Marian.

A atual coordenadora do Parque Nacional da Serra da Capivara é uma das herdeiras diretas do legado de Niède. Filha de uma família desapropriada na criação do Parque, cresceu nas redondezas e hoje conduz sua gestão técnica.
“Assumir depois dela é um desafio enorme. Ela deixou uma referência quase mítica. Mas também uma base muito sólida. O que ela construiu é irreversível”, afirma.
O FUTURO DA SERRA
Marian projeta um futuro de esperança e responsabilidade para a Serra da Capivara:
“Imagino esse lugar como um centro de referência mundial, não apenas em arqueologia, mas em sustentabilidade e inovação no semiárido. Vejo o Parque cada vez mais conectado a uma rede global de áreas protegidas. Mas é preciso reconhecer os desafios: combater a exploração predatória no entorno, fortalecer uma gestão técnica e científica, como Niède sempre defendeu, e evitar que interesses políticos partidários coloquem a conservação em segundo plano. O futuro da Serra da Capivara dependerá da nossa capacidade de preservar esse legado com seriedade e visão”, diz.
Ela também destaca que, além dos riscos ambientais e políticos, há desafios de infraestrutura e engajamento social.
“Precisamos garantir a proteção de uma área imensa, lidar com desmatamento, caça, queimadas e empreendimentos que pressionam o entorno. E, ao mesmo tempo, envolver as novas gerações, para que se sintam corresponsáveis por esse patrimônio. O que mais precisamos é de continuidade e compromisso coletivo”, afirma.
Para ela, a força do legado de Niède está justamente na forma como ela aproximou a ciência das pessoas. “A comunidade hoje é parte da gestão. As mulheres guariteiras, os brigadistas, os condutores de visitantes são filhos e netos das famílias que ela envolveu nos primeiros projetos. Ela não formou apenas arqueólogos; formou cidadãos e defensores da própria terra.”

A NIÈDE QUE POUCOS CONHECIAM
Nos bastidores, Niède também era dona de um humor peculiar. Gostava de contar histórias de suas viagens, ria de si mesma e das situações mais inusitadas da vida. “Ela era durona, mas também muito afetuosa”, diz Rosa. “Me chamava de ‘Trakalo’, e ouvir isso todos os dias faz uma falta enorme.”
Em vida, Niède dizia que “só havia feito seu trabalho”. Mas, na verdade, ela construiu um dos maiores projetos de arqueologia e desenvolvimento comunitário do mundo no Piauí, que, na época, era um dos lugares mais improváveis do Brasil.

RECADO DE NIÈDE AO MUNDO
Na entrada do Museu da Natureza, localizado no município de Coronel José Dias, há um texto escrito por Niède que soa quase como testamento. Nele, ela reconhece a sorte de ter encontrado colegas dispostos a enfrentar as dificuldades, agradece aos moradores que abriram suas casas e encerra com um aviso delicado: “A natureza muda, e o ser humano deve procurar viver sem agredi-la”.

Quatro meses depois de sua partida, sua ausência é sentida, mas sua presença continua, em cada pintura rupestre preservada, em cada criança que aprende o valor da história, em cada pesquisador, em cada indivíduo que entende o que significa recomeçar o mundo a partir do Piauí.
E, como disse Rosa, para os que ficaram, a mensagem dela é simples e definitiva: continuem.