Boa Esperança, comunidade denuncia repetição do Lagoas do Norte sob novo nome: Periferia Viva

Boa Esperança, comunidade denuncia repetição do Lagoas do Norte sob novo nome: Periferia Viva

Cinco anos depois da saída do Banco Mundial da zona norte de Teresina, a comunidade Boa Esperança volta a enfrentar o que considera uma nova ameaça. O anúncio do Projeto Periferia Viva, do Ministério das Cidades, reacendeu velhas desconfianças entre as lideranças locais. Com R$ 27 milhões previstos para obras de urbanização e regularização fundiária, o programa chega sem que os moradores tenham sido consultados, uma violação direta à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito à escuta livre, prévia e informada de povos e comunidades tradicionais.

Boa Esperança reúne cerca de 13 bairros e vilas ribeirinhas às margens do Rio Poti, território marcado por uma longa história de resistência. Lá, a lembrança do Programa Lagoas do Norte, implementado com financiamento do Banco Mundial, ainda ecoa como ferida aberta: remoções forçadas, destruição de espaços sagrados e desestruturação de modos de vida tradicionais. Agora, a chegada do Periferia Viva é vista por moradores como uma tentativa de retomar, sob nova roupagem, o mesmo modelo de intervenção.

Acervo Comunidade Boa Esperança

“É muito preocupante porque, mais uma vez, eles não conversaram com a comunidade. Uma comunidade que já vem passando por vários traumas. E essa comunidade não foi ouvida. A comunidade tradicional não foi ouvida, os pescadores. Eles chegaram de surpresa na comunidade”, denuncia Mãe Lúcia de Iansã, matrigestora da Casa Memorial Maria Sueli, referência cultural e religiosa do território.

Acervo do museu audiovisual da Boa Esperança

Segundo a ialorixá, uma das áreas mais afetadas será a Lagoa dos Roleiros, espaço sagrado e de convivência coletiva. A execução do novo projeto foi dividida entre o Governo do Estado, sob coordenação da Defesa Civil, e a Prefeitura de Teresina, que contratou a Universidade Federal do Piauí (UFPI) para a realização dos estudos técnicos.

“Até hoje nós não fomos consultados, nem ninguém foi consultado a respeito de nada. É um projeto que envolve milhões, e o povo daqui continua sem voz. Eu descobri por acaso, pelas redes sociais. E já estou organizando o povo, porque enquanto existir um fio de coragem, vai existir luta”, afirma Mãe Lúcia.

“O mesmo modelo de sempre”

No último sábado (11), Teresina recebeu a Caravana das Periferias, evento oficial do Ministério das Cidades que marcou a instalação do Posto Territorial Periferia Viva. Durante o ato, o secretário nacional de Periferias, Guilherme Simões, declarou que o objetivo é “levar infraestrutura, iluminação pública, moradia e dignidade para os territórios populares”.

Mas, entre os moradores da Boa Esperança, o discurso institucional não convence. As memórias do Lagoas do Norte ainda são recentes, e o trauma, coletivo. O antigo programa foi alvo de denúncias no Painel de Inspeção do Banco Mundial, que reconheceu violações de direitos humanos e territoriais. O caso segue sem conclusão no Ministério Público Federal (MPF).

“O Periferia Viva é a nova roupagem do Lagoas do Norte. Chega com outra maquiagem, mas a mesma essência: impor um modelo de desenvolvimento sem escuta, sem transparência e sem respeito à história do nosso território”, diz um trecho de nota publicada pelas lideranças da Boa Esperança.

A crítica ecoa uma noção que ganha força entre movimentos ambientais e urbanos: a de racismo ambiental. O termo designa situações em que comunidades negras, indígenas ou tradicionais são sistematicamente excluídas das decisões que impactam seus territórios e modos de vida.

“Eles instalam um posto territorial na porta da nossa casa e não nos convidam a entrar. Querem decidir por nós, sem nos ouvir. Isso é colonialismo travestido de política pública”, afirma Mãe Lúcia.

Escuta ignorada e continuidade da luta

Acervo do museu audiovisual da Boa Esperança

A Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário desde 2004, determina que comunidades afetadas por medidas administrativas ou legislativas sejam consultadas de forma prévia, livre e informada. No caso da Boa Esperança, essa etapa foi ignorada. Para as lideranças locais, a ausência de escuta reabre feridas deixadas por décadas de intervenções planejadas “de cima para baixo”.

A Casa Memorial Maria Sueli prepara agora uma nova mobilização para exigir transparência e respeito à consulta comunitária antes do início das obras. A pauta é clara: nenhum projeto sobre o território sem o território.

“Nós vamos pra cima. A luta continua, porque o que está em jogo é a nossa dignidade, a nossa memória e o direito de existir neste território”, conclui Mãe Lúcia.

Enquanto as máquinas ainda não chegam, Boa Esperança se reorganiza. Entre o medo e a resistência, a comunidade reafirma o mesmo fio de coragem que a fez enfrentar o Banco Mundial, e que agora sustenta mais uma vez sua voz diante do silêncio do poder público.

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