“Boi de Salto” e Tássia Araújo: o cinema piauiense que finca os pés no chão e salta contra a corrente

“Boi de Salto” e Tássia Araújo: o cinema piauiense que finca os pés no chão e salta contra a corrente

Resumo:

No curta-metragem de Tássia Araújo, o mito do bumba meu boi ganha novos contornos, mesclando tradição e ruptura. Ao reinventar a lenda do boi com uma ficha técnica majoritariamente feminina e um olhar contemporâneo, Tássia projeta o cinema piauiense para além do que já foi sonhado.

Framme do Filme, Foto: Maria Navarro

“O meu boi morreu, o que será de mim?” — certamente, muitos piauienses identificam esse canto, esse eco antigo e regionalista, que agora volta em cena, dentro de uma união entre a tradição e a transgressão, “Boi de Salto”, é o novo filme da cineasta piauiense Tássia Araújo. Um curta metragem onde o que se revela é muito maior do que o tempo da projeção: é o indício claro de um cinema piauiense, pulsante e maduro — e que, acima de tudo, se reconhece.

“Boi de Salto”, é na realidade, um marco na história cinematográfica do estado. Ao mesclar um alto nível de investimento, conhecimento técnico, pesquisa e regionalidade, a diretora eleva o nível da ficção-regional do Piauí, do ponto de vista artístico, criativo, sensível e mercadológico. Escancarando assim, a necessidade grotesca e urgente do estado investir em seus próprios(e novos) cineastas. Já que não faltam cabeças, talento e conhecimento.

A partir da figura simbólica do boi — tão presente no imaginário do Piauí — a obra entrega uma nova perspectiva da lenda do bumba meu boi, revelando o desejo, a morte, o ritualístico e o renascimento por outros olhos. O filme decide resgatar a cultura piauiense, marcada por um desejo sangrento e por vezes comum na região, a decisão de contar uma narrativa em cima de outra perspectiva sobre a história, mostra-se também, a necessidade da própria comunidade, se ver, na tela de cinema local. A obra entrega esse abraço, o brilho que é ver sua cultura, sotaque, jeitos, modos e cores na tela. Ver o sotaque piauiense, o boi do Piauí, o reggae do Piauí. 

Cartaz do Filme

Mas não é só a narrativa que impressiona. É o nível técnico e estético que consagra o filme como um marco no cinema piauiense contemporâneo. Com uma fotografia arrebatadora, marcada por composições ricas em textura, luz e cor, o filme mistura o ancestral e o pop, o ritmado e o corte seco, a tradição e o close dramático. E faz isso sem hesitar. Ao iniciar por uma fotografia e trilha marcante, a obra se assemelha ao que todo piauiense possui em seu imaginário coletivo.

A montagem é consciente, bem ritmada, entregando o tempo justo de cada cena, e criando uma cadência que conduz o espectador com precisão. As atuações – espetaculares – provocam o desejo de mais — como se cada personagem fosse um fragmento de um universo maior, à espera de um longa. E talvez seja mesmo esse o plano.

A trilha sonora é um espetáculo à parte. A voz que entoa “manda buscar outra maninha, lá no Piauí” atravessa a tela como um chamado. A canção, escrita por Eduardo das Neves em 1916, resgata o fato do Piauí ser terra de fartura, berço do gado e palco do nascimento do bumba meu boi — uma cultura muitas vezes invisibilizada, agora reivindicada na tela com orgulho e inventividade.

A própria ficha técnica majoritariamente feminina já é um gesto de ruptura. Não só por mudar os bastidores, mas por redefinir o olhar. O cinema de Tássia quebra a quarta parede do imaginário teresinense, arromba as portas do que antes era considerado “possível” para o cinema do estado, e coloca o público diante de uma beleza que já existia — mas que agora grita, dança, sangra, exige atenção e se mostra.

“Boi de Salto” é, sem exagero, absolute cinema piauiense. Um curta que carrega em si a força de um longa por vir. Um filme que dança com o tradicional, finca os pés na transgressão de quem decide ir contra a correnteza, e salta — com salto alto, com elegância, com sangue nos olhos e poesia nos gestos.

Se era preciso uma prova de que o cinema do Piauí está vivo, pulsando e pronto pra mais — Tássia entregou.

 

 

 

Tássia Araúj
Tássia Araújo no set de Boi de salto, Foto: Maria Navarro

Tássia Araújo (1987), de Teresina (PI), é artista visual e cineasta. Atua em projetos sobre memória, identidade e vivências LGBTQIAPN+. Em 2023 lançou o documentário longa-metragem “Comigo Num se Pode”, exibido nos festivais 19° Panorama de Cinema (BA) e XII Rio LGBTQ+, 3° Transgender Film Festival (FL). Em 2025, estreia “Boi de Salto”, curta-metragem de ficção selecionado na Lei Paulo Gustavo–PI.

 

 

 

Ficha técnica
Roteiro e Direção: Tássia Araújo
Doctoring: Vera Egito
Direção de Fotografia: Maria Navarro, DAFB

Assistente de direção: Poliana Oliveira
Direção de Produção: Érica Santos\

Som direto e trilha sonora: Gabriel Portela e Boi Imperador da Ilha

Desenho de som e mixagem: Pedro Caetano
Edição: Carina Bueno e Priscila Guedes

Casting e preparação de elenco: Zé Reis

Elenco: Mikael Costa, Kelly Campelo, Pedro Wagner, Luca Santos

Direção de arte: Verônica Coelho

Figurino: Danton Brando

Maquiagem: Dênis Coulter

Design Gráfico: Josélia Neves

Ilustração: Hudson Melo
Ano de produção: 2025
Gênero: Drama
Duração: 14 minutos
Local de filmagem: Teresina – PI
Financiamento: Lei Paulo Gustavo – Piauí
Produção: Clandestina Filmes
Participação especial: Boi Imperador da Ilha e mestre Raimundo Pereira

 

Compartilhe:

Matérias Relacionadas